segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O estranho mundo de Felipe - CONTO

Matilde comia uma feijoada quando sentiu uma pontada na barriga. Seu bebê mexia, pedia para sair daquele lugar que já se encontrava pequeno para ele. A bolsa havia estourado.
Ela estava sozinha em casa, seu marido havia telefonado dizendo para ela não esperá-lo para almoçar, pois tinha uma reunião no exército.
A vizinha que ali passava ouviu os gritos da amiga e correu para ajudá-la. O bebê está nascendo, disse Matilde. Como isso era possível, pensava a amiga, pois o bebê deveria ir ao mundo só daqui há dois meses.
Para piorar a situação, o Hospital ficava do outro lado do rio e só se chegava lá para uma longa travessia de barco, levava horas. O jeito era encontrar alguma parteira por perto. Na Amazônia, local onde moravam, algumas índias faziam tal trabalho em troca de presentes. Algumas eram bastantes amigáveis, outras selvagens.
Claudete foi atrás da Índia Iguaçu famosa na região por realizar mais de 1000 partos. Era uma senhora de 65 anos, muito sábia por sinal. Sua maior tristeza era não ter tido filhos. Supria sua dor ajudando aos outros a colocarem filhos no mundo.
Quando Iguaçu chegou Matilde não queria sua ajuda, mas como não tinha muita opções e já estava sentindo as contrações acabou aceitando a ajuda da parteira.
Matilde deu a luz a dois meninos. De acordo com a cultura indígena gêmeos nunca eram bem-vindos. Para eles, um seria a manifestação do bem e o outro seria a desgraça na família. Ela então estaria fazendo um bem a ambas partes.
Aproveitando que Matilde estava inconsciente, Iguaçu saiu do quarto e falou para Claudete que havia nascido apenas um menino saindo em seguida levando enrolado em panos o outro bebê.
Matilde após retomar a consciência quis vê seu bebê. Era lindo. Olhou atentamente para conferir se o seu pequeno havia nascido normal, mas apesar do filho está aparentemente saudável e o parto não ter tido nenhuma complicação iria levá-lo ao médico assim que sentisse mais forte.
Paulo ao chegar do trabalho chorou emocionado quando segurou pela primeira vez seu filho. Ficou muito orgulhoso por ter tido um menino.
Ele levou seu bebê ao hospital e constatou que apesar do nascimento prematuro tudo estava bem. Passado uns três dias Paulo resolveu agradecer pessoalmente à Iguaçu pela ajuda no parto, porém a senhora havia se mudado para o Pantanal. Para agradecê-la ele teria que se ausentar da cidade, então decidiu que se algum dia a índia voltasse à Manaus falaria com ela.

O tempo passou e Felipe, filho do casal, iria completar cinco anos. A mãe estranhava o comportamento do filho sempre tão distante e alheio à tudo ao seu redor. O pai falava que se tratava de timidez e mais tarde quando ele conhecesse novos amiguinhos ele iria se soltar mais.
A mãe supersticiosa culpava a índia. Por algum motivo não gostava dela, se arrepiava só de lembrar da parteira. O fato é que Felipe crescia e nem sequer falava mamãe, às vezes balbuciava alguma palavra que ninguém entendia.
Nenhum gesto, nenhum sorriso, não chorava, não brincava, somente mexia o corpo para frente e para trás. Sequer piscava os olhos. Ao vê sua mãe era como se ela não existisse, era como se ninguém existisse.
O casal começou a ficar preocupado. Resolveram levá-lo em vários médicos. Nenhum sabia diagnosticar o que o menino tinha de errado. Eles então viajaram rumo ao Acre onde havia melhores profissionais no ramo.
Uma junta médica constatou que Felipe sofria de um mal incurável. Ela era uma criança altista e provavelmente nunca deixaria de ser, estava condenado a viver no silêncio para sempre.
A mãe decidiu salvar sozinha seu filho, se os médicos haviam desistido de seu filho ela não iria fazer o mesmo. Começou a imitá-lo horas à fio fazendo os mesmos movimentos do menino. Ela ía para frente e para trás. Ficou meses fazendo a mesma coisa e Felipe não reagia.
O pai começou a discutir com Matilde, dizia que era inútil tanto sofrimento. Chorava ao ver sua mulher morrer aos poucos. Ela, por sua vez, não deu ouvidos ao seu marido e continuou ali junto ao seu filho procurando entender o mundo dele.
O garoto deu um primeiro passo para cura. Em um desses longos dias quando a mãe já estava desistindo de sua batalha, o menino piscou. Ele piscou. Foi um gesto singelo, porém único e mágico. Matilde agora tinha certeza que sua luta não era em vão.
Ela então espalhou vários brinquedos pela sala, sentou-se em frente a ele e começou a pegar e soltar uma boneca repetidamente. Ele não reagiu ao estímulo.
Havia se passado mais um ano. O casal estava discutindo: Paulo reclamava de seu desleixo com a casa, com a família por uma causa “inútil”. Matilde falava para Paulo não gritar, pois Felipe poderia escutar. Ele ficava mais irritado ainda, pois seu filho nunca teve nenhuma reação. Paulo sofria a sua maneira pela ausência de seu filho e de sua mulher. “ Sua louca, dizia Paulo, este menino não escuta nada, acorda”. No auge da discussão ele fez menção de bater nela foi nesta hora que Felipe pegou uma boneca e jogou no chão.

A mãe correu para abraça-lo. Ele havia reagido. Seu filho a amava, de alguma maneira ele sabia quem ela era e o quanto ela representava. Paulo estava chorando, não conseguia acreditar. Ajoelhado pedia perdão a sua mulher que o abraçou esquecendo o calor da discussão.
Ele disse que a partir daquele momento iria fazer o que fosse possível para ajudar o seu filho e ter de volta sua família. Ele iria ser, finalmente, o pai que nunca fora para Felipe.
Paula aproveitando as féria do exército passou a se dedicar a Felipe. Juntamente com Matilde ele começou a dar atenção e carinho ao filho. Levava o menino ao parque, ao zoológico, ao circo e nada da criança falar.
No parque uma outra criança tentou puxar conversa com Felipe, mas diante da distância do menino acabou ofendendo Felipinho chamando-o de idiota. Coitado de Felipe nem sabia o que se passava, tão pequeno e já sofria o preconceito da sociedade. O pai ficou muito irritado. Sua vontade era bater no menino, mas sabia que aquela atitude era fruto de uma educação distorcida de cidadania e solidariedade. Ele, então, explicou ao menino que seu filho era diferente dos demais, porém era muito amado talvez até mais do que ele. A criança pediu desculpas e saiu pensativa com as palavras do homem.
Passou mais um ano e Felipe tinha voltado a estaca zero. Paulo havia sido transferido para o Pantanal levando consigo sua família.
Perto de sua casa morava a índia Iguaçu com seu filho Diogo Urucu. Ela estava desfalecendo aos poucos, sofria de tuberculose. Seu filho passava o dia ao lado dela em seu leito de morte.
Quando Iguaçu sentiu que iria fechar os olhos para sempre decidiu contar a seu filho que ele tinha uma outra família e ele deveria procurá-la quando ela fosse falar com Deus. Disse tudo o que fez anos atrás e falou que não tinha nenhum arrependimento, pois ao lado dele tinha passado os anos mais felizes de sua vida. Disse apenas que gostaria de ter a compreensão do menino.
Ele prometeu para ela que iria procurar sua outra família na Amazônia, porém deixou claro que ela sempre, em seu coração, iria ser sua mãe. Ela entregou o endereço nas mãos do menino pediu para ele chegar com o seu rosto junto a ela e o beijou suavemente, disse adeus, e fechou os olhos para sempre.
O menino chorava muito. Sua vizinha junto à comunidade arrecadou um pouco de dinheiro para providenciar o enterro, porém não foi suficiente. Um casal recém chegado de Manaus, de condições sócio-econômicas mais elevadas, ficou comovido com a história do garoto e custeou o enterro. Paulo e Matilde nem suspeitavam que a índia morta fosse Iguaçu e o menino seu filho.

Eles ficaram de ir ao enterro, porém chegaram atrasados por causa do trabalho de Paulo. Ele chegou em casa pegou Matilde e Felipe e foram ao cemitério. Quando chegaram encontraram apenas um garoto com uma mochila atrás das costas. Ele jogava flores para sua mãe.
Quando o garoto virou Paulo e Matilde levaram um choque com a semelhança dele com Felipe. Matilde, então, perguntou para onde ele iria com aquela mochila. Ele falou que iria para a Amazônia em busca de sua outra família.
Matilde naquele instante havia entendido tudo e com os olhos cheio de lágrimas dizia ao menino que ele não precisava mais ir à Amazônia porque seus pais estavam ali diante dele.
Urucu sentia dificuldades para se adaptar a nova família principalmente porque vivia como índio em um universo diferente. Ele apenas compreendia seu irmãozinho. Sabia porque ele não falava. Assim como ele Felipe pertencia a outro mundo distante dali e o que fosse feito seria inútil porque só desse modo eles conseguiam ser felizes.

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